1  Introdução

Why do we need to prove we’re not robots to a robot? Isn’t that a robot’s job?

– ChatGPT, a robot

Captcha (Completely Automated Public Turing test to tell Computers and Humans Apart) é um desafio utilizado para identificar se o acesso à uma página na internet é realizada por uma pessoa ou um robô1. O desafio é projetado para ser fácil de resolver por humanos, mas difícil de resolver por máquinas. Outro nome para os Captchas é Human Interaction Proofs, ou HIPs (CHELLAPILLA et al., 2005).

Um Captcha pode ser classificado como uma variação do teste de Turing (TURING, 2009). A diferença no caso do Captcha é que a avaliação da humanidade do agente é feita por um robô ao invés de uma pessoa – por isso o termo automated. Em algumas situações, Captchas também podem ser entendidos como testes de Turing reversos, apesar dos autores originais afastarem essa caracterização (AHN; BLUM; LANGFORD, 2002).

A tarefa de resolver Captchas também pode ser pensada como uma variação do reconhecimento óptico de caracteres (Optical Character Recognition, OCR). No entanto, os Captchas objetivam enganar justamente as ferramentas de OCR, através de distorções aplicadas às imagens. Como efeito, tais ferramentas costumam apresentar baixo poder preditivo nesse desafio.

Captchas estão presentes em toda a internet. Inicialmente criados para prevenir spam (Sending and Posting Advertisement in Mass), os desafios se tornaram populares rapidamente (AHN et al., 2008), sendo utilizados como forma de evitar o uso indevido de aplicações da web. Algumas ações que os desafios podem ajudar a evitar são:

Por princípio, o uso de Captchas tem como objetivos aumentar a segurança das pessoas que acessam a internet e proteger os sistemas web de uso abusivo. Para pessoas que acessam os sites pontualmente, a presença de Captchas representa um mero dissabor; para quem realiza acessos massivos, uma grande dificuldade.

No entanto, o uso de Captchas não é adequado em todas as situações. Um exemplo são os sites de vendas: o uso dos desafios pode aborrecer usuários, reduzindo a qualidade da experiência ao consumir nesses sites. Os sites devem levar esse fator de aborrecimento em conta para não reduzir a taxa de conversão. Em alguns casos, pode fazer mais sentido abandonar os Captchas e utilizar outros mecanismos de prevenção à fraude, como monitoramento da sessão do usuário (W3C, 2021).

Também existem casos em que o uso de Captchas é prejudicial. Por exemplo, sua utilização em serviços públicos do Brasil é problemática. Para explicar esse problema, no entanto, é necessário descrever o contexto jurídico e como pesquisas aplicadas podem ser prejudicadas com o uso de Captchas.

Captchas em serviços públicos

A Constituição Federal de 1988 (CF), em seu inciso XXXIII do art. 5º, prevê que “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;”. Essa previsão é implementada pela Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011; LAI), que se aplica “aos órgãos públicos integrantes da administração direta dos Poderes Executivo, Legislativo, incluindo as Cortes de Contas, e Judiciário e do Ministério Público”, bem como “as autarquias, as fundações públicas, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios” (Art. 1º).

A LAI, apesar de trazer diversos benefícios à sociedade, tem dois problemas. O primeiro é o esforço: tanto a pessoa/órgão que solicita os dados, quanto o órgão que retorna os dados precisam trabalhar para disponibilizar as informações, sendo necessário deslocar equipes para realizar os levantamentos pedidos. O segundo é o formato: os dados enviados como resultado de pedidos de LAI podem chegar em formatos inadequados para consumo da solicitante, muitas vezes em Portable Document Format (PDF), que dificulta a leitura e análise dos dados (MICHENER; MONCAU; VELASCO, 2015, pág. 55); além disso, como o levantamento é realizado de forma individualizada, o mesmo pedido feito em diferentes períodos (e.g. uma atualização mensal dos dados) pode vir em formatos diferentes, dificultando a leitura e arrumação dos dados.

Uma forma eficiente de evitar os problemas de esforço e formato em pedidos de LAI é disponibilizar os dados de forma aberta. Como definido pela Open Knowledge Foundation (OKFN), a base de dados “deve ser fornecida em uma forma conveniente e modificável, isenta de obstáculos tecnológicos desnecessários para a realização dos direitos licenciados. Especificamente, os dados devem ser legíveis por máquina, disponíveis em todo o seu volume, e fornecidos em um formato aberto (ou seja, um formato com sua especificação livremente disponível, e publicada sem quaisquer restrições, monetárias ou não, da sua utilização) ou, no mínimo, podem ser processados com pelo menos uma ferramenta de software livre e gratuita.”2

As vantagens ao disponibilizar dados públicos de forma aberta para a sociedade é um tema pacífico na comunidade científica (MURRAY-RUST, 2008). No Brasil, existem plataformas dedicadas à abertura de dados governamentais, como o dados.gov.br. No entanto, existem diversos dados públicos que ainda não estão disponíveis de forma aberta.

A dificuldade de acesso é particularmente evidente no Poder Judiciário, que além de não disponibilizar um portal de dados abertos, impõe barreiras aos pedidos de acesso à informação por utilizar diversos sistemas para armazenar os dados. Por exemplo, para pedir uma lista de todos os processos judiciais relacionados à recuperação judicial de empresas, as únicas alternativas são i) pedir os dados ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que não possui informações suficientes para obter a lista3 ou ii) expedir ofícios aos 27 Tribunais Estaduais. Cada tribunal apresentaria diferentes opções e critérios de acesso aos dados, diferentes prazos para atendimento e diferentes formatos, podendo, inclusive, negar o pedido de acesso.

A dificuldade para acessar os dados do judiciário é a principal barreira para realização de pesquisas pela Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ), empresa na qual o autor desta tese trabalha. A entidade tem como missão principal realizar estudos empíricos para implementar políticas públicas utilizando dados do judiciário.

Dos 16 projetos disponibilizados na página de pesquisas no site da ABJ, pelo menos 12 (75%) apresentaram dificuldades na obtenção dos dados via pedidos de acesso aos órgãos. Três exemplos emblemáticos são o da pesquisa sobre Tempo dos processos relacionados à adoção no Brasil (ABJ, 2014), o Observatório da Insolvência: Rio de Janeiro (ABJ, 2021) e o Diagnóstico do Contencioso Tributário Administrativo (ABJ, 2022). No primeiro caso, dois tribunais enviaram os dados em arquivos em papel, sendo que um deles ultrapassou mil páginas com números de processos impressos. No segundo caso, o pedido foi respondido com uma planilha de contagens ao invés da lista de processos. No último caso, até mesmo órgãos que faziam parte do grupo de trabalho da pesquisa negaram pedido de acesso a dados de processos tributários em primeira instância, com argumentos que variavam desde a dificuldade técnica de levantar os dados até a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

Em muitas situações a única alternativa para realizar as pesquisas é acessando os dados via coleta automatizada nos sites. Todos os tribunais possuem ferramentas de consulta individualizadas de processos, por conta do que está previsto na CF. A solução, portanto, passa a ser construir uma ferramenta que obtém todos os dados automaticamente. Tal conceito é conhecido como raspagem de dados (ZHAO, 2017) e será desenvolvido com maiores detalhes no Capítulo 2.

Os Captchas se tornam prejudiciais à sociedade quando o acesso automatizado é necessário para realizar pesquisas científicas. Infelizmente, vários tribunais utilizam a barreira do Captcha. Alguns tribunais, inclusive, têm o entendimento de que o acesso automatizado é prejudicial, como o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), que emitiu um comunicado sobre o tema.

Uma justificativa comum para implementar Captchas em consultas públicas é a estabilidade dos sistemas. Ao realizar muitas consultas de forma automática, um robô que faz consultas automatizadas pode tornar o sistema instável e, em algumas situações, até mesmo derrubar o servidor ou banco de dados que disponibiliza as consultas.

O problema é que utilizar Captchas não impede o acesso automatizado. As empresas que fazem acesso automatizado em tribunais podem construir ferramentas ou utilizar serviços externos de resolução de Captchas. Ou seja, ao utilizar Captchas, o acesso não é impedido, apenas especializado.

Utilizar Captchas também é uma solução ineficiente. Do ponto de vista técnico, a solução mais eficiente para disponibilizar os dados é através de ferramentas de dados abertos como o Comprehensive Knowledge Archive Network (CKAN). Ao disponibilizar os dados de forma aberta, as consultas automatizadas ficariam isoladas dos sites de consulta pública, o que garantiria o acesso das pessoas sem problemas de indisponibilidade.

Não é só quem faz pesquisa com dados públicos que o uso de Captchas pode ser prejudicial. No mercado, existem serviços de resolução de Captchas que utilizam mão de obra humana, em regimes que pagam muito menos do que um salário-mínimo a 8 horas de trabalho. Um exemplo é o 2Captcha4, que funciona como um Uber dos Captchas: o algoritmo automatizado envia o Captcha para a plataforma, que é acessado e resolvido por uma pessoa, retornando a solução para o algoritmo. O 2Captcha é operado pela ALTWEB LLC-FZ, uma empresa com base em Dubai5.

Segundo o site, o valor pago pelo 2Captcha é de US$ 0,5 para 1 a 2 horas de trabalho. No regime da Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto-Lei 5.452/1943, CLT) as horas mensais de trabalho são 220. Trabalhando continuamente no 2Captcha, isso daria um salário de 55 a 110 dólares por mês, valor bem abaixo do salário-mínimo do Brasil, que no ano de 2022 era de R$ 1.100,006, mesmo considerando os valores mais altos de taxa de câmbio. Ou seja, os serviços públicos acabam, indiretamente, incentivando um mercado que paga abaixo do salário-mínimo. Luis von Ahn, um dos criadores dos Captchas, define o 2Captcha como um sweatshop, um termo utilizado para caracterizar empresas que têm condições de trabalho inaceitáveis.

A solução definitiva para os problemas gerados pelos Captchas é a disponibilização dos dados públicos de forma aberta. Na ausência dessa solução, seja por falta de interesse ou iniciativa dos órgãos públicos, a alternativa é desenvolver uma solução para resolver Captchas que seja gratuita e aberta. Tal solução desincentivaria economicamente o uso de sistemas como o 2Captcha, protegendo as pessoas que fazem as resoluções e auxiliando pesquisadores em seus estudos.

O presente trabalho busca avançar nesse sentido. A solução desenvolvida envolve um modelo que resolve alguns Captchas automaticamente, reduzindo significativamente a necessidade de anotação manual.

Para compreender completamente o avanço que a tese representa, no entanto, é necessário apresentar o histórico de desenvolvimento dos Captchas. A descrição é feita através de uma luta entre geradores e resolvedores de Captchas, que pode ser dada como encerrada no ano de 2018, com o advento do reCaptcha v3.

Uma luta entre geradores e resolvedores

O primeiro texto técnico sobre Captchas foi publicado por AHN; BLUM; LANGFORD (2002). O texto apresenta o Captcha e seu significado através do problema de geração de emails automáticos no Yahoo. Em seguida, apresenta alguns exemplos de candidatos a Captcha, com tarefas de reconhecimento de padrões ou textos. Uma característica interessante dos autores sobre o Captcha é que suas imagens devem ser disponíveis publicamente. O texto também faz a conexão entre a tarefa dos Captchas e os desafios da inteligência artificial. Um ponto a destacar é que os autores incentivam pesquisas para resolver Captchas, pois isso implica em avanços na inteligência artificial. O site original do projeto, The Captcha Project, foi lançado em 2000.

O relatório técnico de AHN; BLUM; LANGFORD (2002) não foi o primeiro a apresentar o nome Captcha, nem suas aplicações. RESHEF; RAANAN; SOLAN (2005) foi o primeiro registro de patente com o termo e LILLIBRIDGE et al. (2001) foi o primeiro registro de patente que implementou uma solução aos sistemas de Captchas. No entanto, o relatório técnico de 2002 é o primeiro que reconhecidamente trata do tema como um problema de inteligência artificial.

Os artigos mais conhecidos de introdução aos Captchas são VON AHN et al. (2003) e VON AHN; BLUM; LANGFORD (2004). O conteúdo dos trabalhos é o mesmo, sendo o primeiro deles na forma de apresentação e o segundo na forma de relatório. Um detalhe interessante é a ênfase dos autores no termo Public dos Captchas, mostrando a preocupação em manter os códigos públicos.

Os autores também defendem que o Captcha é uma forma de fazer com que pessoas mal-intencionadas contribuam com os avanços da inteligência artificial. Se uma pessoa (ainda que mal-intencionada) resolve um Captcha e publica essa solução, isso significa que a comunidade científica avançou na área de inteligência artificial.

Não demorou para surgirem os primeiros resolvedores de Captchas7. MORI; MALIK (2003) foi um dos primeiros trabalhos publicados sobre o tema e utiliza diversas técnicas de processamento de imagens para obter os rótulos corretos. Também não demorou para a comunidade científica perceber que redes neurais eram úteis nesse contexto (CHELLAPILLA; SIMARD, 2004). No artigo de 2004, Chellapilla e Simard desenvolvem um algoritmo baseado em heurísticas para segmentar a imagem e redes neurais para identificar as imagens individuais.

A partir desse ponto, foi iniciada uma luta entre geradores e resolvedores de Captchas. Do lado dos geradores, as pessoas envolvidas foram tanto acadêmicos tentando desenvolver desafios cada vez mais difíceis para avançar na pesquisa em inteligência artificial, quanto empresas de tecnologia tentando se proteger contra robôs sofisticados. Do lado dos resolvedores, as pessoas envolvidas foram tanto acadêmicos tentando desenvolver novas técnicas para avançar nos modelos de reconhecimento de imagens, quanto spammers buscando novas formas de realizar ataques cibernéticos.

Uma das pessoas envolvidas com geradores de Captchas mais conhecidas é Luis von Ahn, um dos criadores do artigo original do Captcha. Um pedaço da história dos Captchas está disponível nos primeiros cinco minutos de sua entrevista em um programa britânico chamado Spark8. Na entrevista, Von Ahn conta um pouco sobre origem dos Captchas em Carnegie Mellon, contando que ficou frustrado com o fato de as pessoas perderem tempo de inteligência humana ao resolver Captchas, o que deu origem ao reCaptcha. Outro vídeo instrutivo é uma palestra de Von Ahn na Thinking Digital Conference sobre a história do reCaptcha9. Segundo ele, a startup foi criada em maio de 200710, depois de Von Ahn verificar que aproximadamente 200 milhões de Captchas eram resolvidos diariamente.

O reCaptcha v1 aproveitou o tempo das pessoas que resolvem Captchas para digitalizar livros (AHN et al., 2008). A ideia do reCaptcha, como demonstrada na Figura 1.1, foi apresentar duas palavras distorcidas para a pessoa. Imagine que uma ferramenta de OCR (Optical Character Recognition) está digitalizando a página de um livro que foi escaneada de um documento físico, ou seja, está transformando a foto da página do livro em um arquivo de texto. Na Figura, “upon” seria uma palavra que a ferramenta de OCR conseguiu transformar a imagem em texto com sucesso, enquanto “between” seria uma palavra em que a ferramenta de OCR falhou. A primeira palavra seria utilizada para verificar se o agente era ou não humano, e a segunda seria utilizada para decifrar a palavra e aprimorar as ferramentas de OCR. Em 2009, a empresa foi comprada pela Google, que utilizou o reCaptcha v1 para digitalizar os livros que estão presentes no site Google Books.

Figura 1.1: Explicação de von Ahn sobre o funcionamento do reCaptcha

Curiosamente, foi com a própria Google que os resolvedores ficaram em vantagem na luta contra geradores. Os modelos de inteligência artificial continuaram avançando, notadamente com o avanço dos modelos de redes neurais profundas (LECUN; BENGIO; HINTON, 2015). No trabalho de GOODFELLOW et al. (2013), foi apresentado um modelo de redes neurais convolucionais que resolvia o reCaptcha v1 com 99,8% de acurácia. No ano seguinte, em 2014, a Google descontinuou o reCaptcha v1, lançando o reCaptcha v2.11

O reCaptcha v2 apresentou duas inovações importantes. O primeiro foi o botão “I’m not a robot”, um verificador automático do navegador que utiliza heurísticas para detectar se o padrão de acesso ao site se assemelha com um robô ou humano. O segundo foi a mudança no tipo de tarefa: ao invés de rotular um texto distorcido, o desafio passou a ser identificar objetos e animais, como na Figura 1.2.

Figura 1.2: Exemplo do reCaptcha v2 com a imagens de perus

A mudança do tipo de tarefa de visão computacional foi importante para o sucesso do reCaptcha v2. O desafio é mais difícil, já que existem muito mais objetos e imagens do que letras e números, aumentando significativamente o suporte da variável resposta. Por exemplo, um modelo para identificar perus pode ser facilmente desenvolvido a partir de uma base anotada, potencialmente custosa para ser construída. O reCaptcha v2, no entanto, pode facilmente mudar a tarefa para identificar leões, cães, hidrantes e semáforos, inutilizando o modelo criado para classificar perus.

O reCaptcha v2 também foi usado para gerar novas bases de dados para a Google, usando o mesmo princípio do reCaptcha v1. A humanidade do agente é verificada apenas com uma parte das imagens. As outras imagens eram utilizadas para anotar imagens, utilizadas para aprimorar modelos utilizados nos projetos de carros autônomos, Google Street View e outras iniciativas da empresa.

Com o advento do reCaptcha v2, a pergunta de interesse dos resolvedores de Captcha passou a ser: como criar modelos que funcionam razoavelmente bem sem a necessidade de anotar muitas imagens? Se esse desafio fosse resolvido, dois avanços aconteceriam: i) um grande avanço na inteligência artificial, especificamente na área de visão computacional, e ii) uma nova forma de vencer a luta de geradores e resolvedores.

Até o momento de escrita da tese, não existia um modelo geral que resolvesse com alta acurácia todos os desafios colocados pelo reCaptcha v2 e seus concorrentes. No entanto, vários avanços apareceram no sentido de reduzir a quantidade de imagens anotadas para criar candidatos a resolvedores. Dentre eles, os mais significativos são os baseados nas redes generativas adversariais (Generative Adversarial Networks, ou GANs), propostas no famoso trabalho de GOODFELLOW et al. (2014). O primeiro trabalho que utiliza modelos generativos no contexto de Captchas mostrou uma redução de 300x na quantidade de dados anotados necessários para resolver um Captcha (GEORGE et al., 2017). Nesse caso, os autores propõem uma rede diferente do GAN, chamada Recursive Cortical Network, ou RCN. Outros trabalhos mais recentes (WANG et al., 2021; YE et al., 2018) avançam ainda mais na pesquisa, reduzindo o trabalho de classificação para um novo Captcha de texto para aproximadamente 2 horas.

Mas foi em 2018, com o reCaptcha v3, que a Google fez um passo definitivo. Com a nova versão, as verificações do navegador web passaram a ser muito mais poderosas, sendo raros os casos em que o site fica em dúvidas se a pessoa é ou não um robô. Versões mais recentes, como o reCaptcha Enterprise, de 2020, ainda permitem que as mantenedoras dos sites façam o ajuste fino de modelos de detecção de robôs. Dessa forma, desafios de reconhecimento de texto e objetos em imagens perderam a importância.

Então, no final, quem venceu a luta de geradores e resolvedores? Na verdade, nenhuma das duas! O que ocorreu com o reCaptcha v3 e seus sucessores foi, no fundo, uma mudança de perspectiva: o Captcha deixou de ser um sistema passivo e passou a ser um sistema ativo de verificação do agente. Ao invés de criar uma tarefa difícil de resolver por robôs e fácil de resolver por pessoas, os sistemas criaram uma camada de verificação da sessão de acesso do usuário, incluindo análises do navegador, dos cookies e dos padrões de cliques. Antes mesmo de chegar no desafio de reconhecimento, o algoritmo de acesso precisa enganar os verificadores. Essa tarefa é muito mais parecida com um problema de cyberataque do que uma tarefa de inteligência artificial.

A luta entre sites e spammers continua, mas não é mais uma luta entre geradores e resolvedores. Por conta disso, os desafios dos Captchas, sejam de texto ou de imagem, são hoje muito mais uma questão acadêmica do que uma questão de segurança. A pesquisa sobre Captchas ainda é promissora e pode gerar muitos resultados importantes para a área de inteligência artificial.

Apesar dos avanços do reCaptcha v3, Captchas de textos em imagens continuam sendo populares na internet. Isso é especialmente evidente nos serviços públicos – objeto deste trabalho –, já que os serviços raramente são atualizados com ferramentas mais recentes. Desenvolver uma ferramenta que facilita a resolução de Captchas em sites públicos é uma forma de incentivar os sites a serem atualizados, disponibilizando os dados públicos de forma mais eficiente.

Desenvolver e disponibilizar novos métodos para resolução de Captchas de textos em imagens pode ter um impacto positivo na transparência dos serviços públicos. Essa é a lacuna identificada a partir da observação do estado atual dos serviços públicos e dos trabalhos acadêmicos analisados.

A pesquisa apresenta um fluxo de trabalho que pode ser facilmente aplicado a diferentes modelos de resolução de Captchas, incluindo arquiteturas que ainda não foram desenvolvidas. O fluxo de trabalho funcionará como um acelerador do aprendizado, possibilitando a criação de modelos que não precisam de intervenção humana.

O resultado será encontrado explorando o potencial de uso do oráculo, disponível em todos os Captchas de textos em imagens. Para definir e contextualizar o uso do oráculo, no entanto, é necessário apresentar algumas características sobre o problema estudado.

Oráculo

Modelos de aprendizagem profunda usuais podem ser sensíveis a perturbações pequenas nas imagens (YUAN et al., 2019). Por isso, para resolver o Captcha de um tribunal, um modelo que resolve o Captcha de outro tribunal pode não ser eficaz, sendo necessário baixar e anotar uma nova base e treinar um novo modelo.

Avanços em técnicas de regularização fazem com que o modelo seja menos afetado por mudanças nos desafios gerados. Uma técnica de regularização que ajuda na capacidade de generalização é a aumentação de dados com adição de ruídos (NOH et al., 2017). No entanto, nenhuma técnica garante que o modelo terá excelentes resultados em novos desafios.

Uma alternativa é desenvolver modelos que aprendem com poucos dados anotados. Como comentado anteriormente, GANs e modelos relacionados podem apresentar bons resultados na resolução de tarefas de imagens, mesmo com uma base de dados pequena. Nesse sentido, ainda que um site mude seu Captcha, é possível ajustar um modelo que resolve esse Captcha sem a necessidade de anotar muitos exemplos para construir uma nova base de treino.

Nessa tese, apresenta-se uma nova técnica para resolver Captchas com poucas ou nenhuma imagem anotada, chamada Web Automatic Weak Learning (WAWL). A técnica alia técnicas de raspagem de dados com técnicas de aprendizado fracamente supervisionado, especificamente o aprendizado com rótulos parciais, explorando uma característica específica dos Captchas, que é a presença de um oráculo.

Oráculo é a resposta do site pesquisado, afirmando se o rótulo enviado está correto ou errado. Eles estão disponíveis em todos os sites com Captchas, já que, por definição, o Captcha precisa apresentar o resultado do teste para o usuário. O nome “oráculo” foi inspirado na mitologia grega, partindo do fato de que o site já possui a informação correta, como um deus. O site, no entanto, se comunica com o usuário através de um intermediário (o oráculo) que apresenta a resposta de forma limitada.

Oráculos se manifestam de diversas formas nos sites com Captchas. Por exemplo, pode dar a possibilidade de realizar apenas um teste por imagem, vários testes por imagem, ou ainda retornar informações ruidosas. Um exemplo de oráculo ruidoso é o reCaptcha v1, que pode retornar com um “bom o suficiente” quando o rótulo não está totalmente correto (AHN et al., 2008).

O oráculo é uma forma de obter uma base de dados virtualmente infinita. Do ponto de vista de modelagem, é similar a um problema de aprendizado por reforço (SUTTON; BARTO, 2018), mas com uma resposta binária (acertou ou errou) no lugar de um escore.

O método WAWL consiste em aproveitar o fato de que o Captcha, por definição, aplica um teste de Turing automático para gerar bases de dados parcialmente anotadas. Ou seja, a técnica resolve o problema não com modelos mais sofisticados, mas com a utilização eficiente dos recursos disponíveis. Qualquer modelo pode se aproveitar dessa característica dos Captchas, incluindo as arquiteturas mais sofisticadas ou técnicas que ainda não foram desenvolvidas.

A metodologia parte de um modelo inicial, que pode ter baixo poder preditivo. O modelo inicial pode ser ajustado com as técnicas usuais de modelagem, ou utilizando um modelo mais sofisticado como GAN. Em seguida, o site na web é acessado múltiplas vezes, gerando uma nova base de dados virtualmente infinita, que é completamente anotada nos casos de acerto e que apresenta o histórico de erros no caso de erro. Os dados gerados automaticamente são então aproveitados para aprimorar o modelo inicial.

Um ponto importante do WAWL é como aproveitar a informação oferecida pelo oráculo. Utilizar somente os casos anotados corretamente, obtidos de acertos no teste do oráculo, induz viés de seleção na amostra (NA et al., 2020). Como o modelo só tem acesso aos casos em que já funciona bem, a informação obtida não é tão relevante. O desafio de modelagem da tese reside em como considerar a informação fornecida pelo oráculo nos casos em que o modelo inicial erra.

Do ponto de vista estatístico, a informação produzida pelo oráculo pode ser entendida como uma informação censurada (COLOSIMO; GIOLO, 2006). Isso acontece pois a informação existe e é correta, mas não está completa. No entanto, como a informação é resultado do teste de um rótulo produzido por um modelo, faz sentido afirmar que a censura não é gerada por acaso.

Na área de aprendizado de máquinas, um modelo que apresenta resposta censurada ou incompleta faz parte da classe de aprendizado fracamente supervisionado (ZHOU, 2018). Trata-se de uma área ainda pouco investigada na literatura, mas bastante ampla, englobando não só os métodos supervisionados como também os métodos semi-supervisionados. A tese apresentará os conceitos de aprendizado fracamente supervisionado, com foco na classe de problemas que a modelagem utilizando Captchas representa.

O custo técnico de implementar o WAWL está na necessidade de utilizar técnicas de raspagem de dados para criar uma nova base usando o oráculo. Essas técnicas imitam repetidamente o que um humano faria para acessar o site, precisando ser desenvolvidas de forma customizada para cada Captcha analisado.

No entanto, resolver Captchas é uma tarefa meio, não uma tarefa fim. Na prática, o interesse é construir ferramentas que acessam os sites e realizar pesquisas com os dados obtidos. E as ferramentas que acessam os sites para obter dados já envolvem a construção de raspadores de dados. Como o desenvolvimento de raspadores de dados é necessário em todas as pesquisas, a parte de raspagem de dados no método WAWL possui tempo de desenvolvimento negligenciável.

A tese tem como foco principal descrever e testar a eficácia do método WAWL. Mas a tese também tem objetivos práticos, relacionados à resolução de Captchas que estão presentes em serviços públicos e disponibilização das soluções desenvolvidas para a comunidade de programadores. A seguir, apresenta-se a lista de objetivos completa, de forma concisa.

Objetivo

O objetivo geral da tese é desenvolver um método inovador, chamado WAWL (Web Automatic Weak Learning) para resolver Captchas, misturando técnicas de aprendizado profundo com raspagem de dados e aproveitando os dados fornecidos pelo oráculo.

Especificamente, a pesquisa tem como objetivos:

  1. Descrever o método proposto e estudar suas características.
  2. Construir e disponibilizar um repositório de dados para realização de mais pesquisas no ramo.
  3. Ajustar modelos e testar a eficácia do método.
  4. Disponibilizar um pacote computacional aberto que possibilita a implementação de soluções para resolver Captchas presentes em serviços públicos.

Justificativa

O presente trabalho é relevante para a ciência por três motivos: importância teórica, viabilidade técnica e importância prática. Os pontos são explicados abaixo.

Do ponto de vista teórico, a tese é importante por apresentar uma aplicação muito especial do aprendizado fracamente supervisionado. No caso do Captcha, como a base de dados fracamente supervisionados é virtualmente infinita, trata-se de uma excelente oportunidade para testar novas técnicas e verificar como elas se comportam empiricamente. Os objetivos 1 e 2 estão relacionados a essa justificativa.

Com relação à viabilidade técnica, o trabalho parte de uma lista de Captchas que já foram resolvidos utilizando técnicas tradicionais de aprendizado profundo. Como os Captchas já foram resolvidos previamente, mesmo que a WAWL não apresentasse bons resultados – e apresenta – o projeto ainda teria como subprodutos as bases de dados e o pacote computacional disponibilizados abertamente. O objetivo 3 é o que torna a proposta tecnicamente viável.

Finalmente, do ponto de vista prático, Captchas em serviços públicos causam desequilíbrio de mercado e incentivam o uso de serviços com formas de remuneração duvidosas. O objetivo 4 vai de encontro direto com esse problema, ao disponibilizar uma ferramenta gratuita e aberta para resolução de Captchas que pode ser utilizada em diversos serviços públicos.

Hipóteses

O projeto foi desenvolvido em torno de duas hipóteses principais. As hipóteses têm origem tanto do levantamento bibliográfico realizado para desenvolver a pesquisa, quanto da experiência pessoal do autor em projetos de pesquisa aplicados.

  1. A utilização do WAWL gera modelos que resolvem Captchas de textos em imagens sem a necessidade de criar grandes bases anotadas.

  2. É possível aliar a área de raspagem de dados com a área de modelagem estatística.

Organização do trabalho

O segundo capítulo, “metodologia”, contém todos os passos dados para construção da tese, tanto do ponto de vista teórico como prático. Parte-se da definição técnica dos Captchas, chegando até as redes neurais e a classe problema trabalhada de forma ampla. Em seguida, apresenta-se o método WAWL e suas características. Depois, a base de dados é descrita, mostrando as fontes de dados consideradas e as técnicas de raspagem de dados utilizadas. Por último, descreve-se, com detalhes, as simulações realizadas para obter os resultados empíricos.

O terceiro capítulo, “resultados”, apresenta os resultados da pesquisa. Primeiro são apresentados os resultados das simulações e outros experimentos realizados com a técnica WAWL. Em seguida, descreve-se o pacote {captcha}, criado para atingir o objetivo 4 da pesquisa. O capítulo também apresenta uma breve discussão dos resultados obtidos.

No quarto e último capítulo, “conclusão”, a pesquisa é concluída, com apresentação das considerações finais e próximos passos. No final, também foi incluído um apêndice descrevendo e documentando os pacotes {captchaDownload} e {captchaOracle}, criados para atuar em conjunto com o pacote {captcha} para implementar o método WAWL.


  1. Para os fins dessa tese, a menos que mencionado de forma explícita, os termos “máquina” e “robô”, ou ainda “procedimento automatizado” serão tratados como sinônimos, geralmente com o nome “robô”.↩︎

  2. Link: https://okfn.org/opendata/. Último acesso em 01/11/2022.↩︎

  3. O CNJ só consegue listar os processos relacionados a um tema a partir da definição de Classes e Assuntos, disponíveis no Sistema de Gestão de Tabelas (SGT) do CNJ. Processos relacionados a recuperação judicial, no entanto, não respeitam a taxonomia do SGT (ABJ, 2021).↩︎

  4. Link do 2Captcha. Último acesso em 01/11/2022.↩︎

  5. Link dos termos de serviço do 2Captcha. Último acesso em 01/11/2022.↩︎

  6. Fonte: IPEA. Último acesso em 01/11/2022.↩︎

  7. Outro termo para resolver Captchas é quebrar Captchas. Nesta tese, optou-se por utilizar o termo resolver, para enfatizar a interpretação do Captcha como um desafio, não como um problema de criptografia.↩︎

  8. Spark, 2011. Link no Web Archive. Último acesso em 01/11/2022.↩︎

  9. Link do vídeo no YouTube. Último acesso em 01/11/2022.↩︎

  10. Segundo o texto da Wired: “So he’s fighting back. In late May, von Ahn launched reCaptcha, a service that he believes is the toughest Captcha yet devised. ReCaptcha presents users with two stretched and skewed words, each bisected by a diagonal line”. Último acesso em 01/11/2022.↩︎

  11. Are you a robot? Introducing No Captcha reCaptcha. Acessível no blog da Google. Último acesso em 01/11/2022.↩︎